sábado, 13 de março de 2021

Lusitani.

 

Porque é que os Portugueses só reconhecem os Lusitanos como seus antepassados se havia outras tribos em Portugal?

TL; DR; Alguns reconhecem, outros não. «Lusitani» foi um termo legado pelos romanos para salvaguardar a sanidade mental das gerações subsequentes…

Passemos por cima da Ora Maritima, que pode ser baseada numa obra do século VI A.C. Grega e como toda a gente sabe os tipos não tinham os cinco bem aferidos (isso e não ser o âmbito da pergunta), das designações para estas terras (Ophiussa e Oestrymnis) e para os povos que por cá andavam (Celtas, Tartéssios, Cynetes, Draganes, Cempsi, Saefes). Assinalando apenas uma coisinha. Os Celtas aparecem sempre na península…

Seguindo em frente…

Como filhos de Roma, que somos, devemos ter sempre presente que o termo «Lusitani» é uma criação romana, que os povos que por cá habitavam identificavam-se de outra forma e que a definição do território chamado «Lusitânia» sempre foi movediço, dependente primeiro das movimentações e ganhos territoriais romanos e depois dos jogos de poder entre o Senado e o Imperador. Só após a criação de uma província romana com esse nome é que a ideia consolidou-se. Mesmo assim as fronteiras dessa província não foram imutáveis sendo alteradas consoante os interesses políticos do momento. Por exemplo, nem toda a gente sabe que a Galiza fez parte da Lusitânia, antes da reorganização territorial de 14 a.c., ou que a província foi esticando ou encolhendo ao longo da sua história:

(não sei de onde tirei isto :( )

Para os romanos, se os povos tinham costumes e idiomas similares eram colocados num mesmo saco…

Já os Gregos conseguiam generalizar ainda mais os outros povos:

( Hamill-Keays, Seamus - CELTIC ORIGINS: IBERIAN DIMENSIONS )

Estrabão[1] , no no seu Geografia (Livro III)[2] , clarifica a plasticidade dessas designações políticas de uma forma que não deixa dúvidas: «por isso, ao serem também os mais difíceis de combater, eles próprios deram o sobrenome ao que submeteu os Lusitanos* e fizeram com que à maior parte dos Lusitanos* se chame ainda hoje Galaicos*», ou seja a separação dos Galaicos num povo diferente dos Lusitanos foi devido à necessidade de arranjar um cognome para Décimo Junio Bruto. Por causa de algo tão vulgar como isto temos, hoje em dia, uma série de indivíduos a reclamarem-se Galaicos ou Lusitanos quando para os romanos era a mesmíssima coisa. Só não era para os nativos do sítio.

Mas sempre podem ler os trechos relativos a esta zona:

Capítulo 3

Costa ocidental e setentrional da Ibéria.

Lusitânia. Montanheses do norte peninsular

1. Se se retomar desde o princípio, a partir do Promontório Sagrado*, para o outro lado da costa, em direcção ao Tejo*, há um golfo, depois um cabo, o Barbário*, e perto deste, as embocaduras do Tejo*; até elas, em navegação em linha recta, estádios […] são dez. Existem também ali estuários, dos quais um avança mais de quatrocentos estádios a partir da mencionada torre, ao longo do qual se erguem [povoações] […]*. O Tejo* tem de embocadura uma extensão de vinte estádios e uma grande profundidade, de modo que pode ser subido por cargueiros com capacidade para dez mil ânforas. Quando as marés têm lugar, forma dois estuários nas planícies que se situam para o interior, de modo que se estende como um mar por cento e cinquenta estádios e torna a planície navegável; no estuário superior circunda uma pequena ilha de cerca de trinta estádios de comprimento, e de largura um pouco aquém do comprimento, fecunda e com belas vinhas. A ilha fica diante de Móron*, cidade bem situada numa elevação perto do rio, a uns quinhentos estádios do mar, e também com uma terra fértil em redor e com as navegações fáceis até uma distância considerável, inclusive para grandes embarcações, embora o resto do percurso, apenas para barcos de rio (e acima de Móron*, é navegável por uma distância ainda maior). A esta cidade, Bruto, denominado o Galaico, usou-a como base de operações quando lutou contra os Lusitanos* e os submeteu. […] poderia ter as navegações desimpedidas e o abastecimento dos víveres, de modo que, de entre as cidades em redor do Tejo*, são estas as mais poderosas. O rio, por outro lado, é abundante em peixes e está repleto de bivalves. E tendo a sua nascente entre os Celtiberos*, corre através de Vetónios*, Carpetanos* e Lusitanos* em direcção ao ocidente equinocial, sendo paralelo até certo ponto ao Anas* e ao Bétis*, mas afastando-se deles depois, quando se desviam para a costa sul.

2. Os povos estabelecidos para o interior das regiões mencionadas são os Oretanos*, que ficam mais a sul e se estendem até à costa da parte de cá das Colunas*. Os Carpetanos*, por seu turno, vêm a seguir a estes, para norte, depois Vetónios* e Vaceios* - por cujo território corre o Douro*, que tem travessia em Acúcia*, uma cidade dos Vaceios*. E os últimos são os Galaicos*, que ocupam uma grande parte da zona montanhosa (por isso, ao serem também os mais difíceis de combater, eles próprios deram o sobrenome ao que submeteu os Lusitanos* e fizeram com que à maior parte dos Lusitanos* se chame ainda hoje Galaicos*). Da Oretânia*, sem dúvida, as cidades mais poderosas são Castulo* e Oria*.

3. A norte do Tejo*, a Lusitânia* é o maior agregado populacional dos Iberos* e o combatido durante mais tempo pelos Romanos*. Delimitam esta região, do lado sul, o Tejo*; a oeste e a norte, o Oceano*, e a este, os Carpetanos*, os Vetónios*, Vaceios* e Galaicos* (povos estes conhecidos; os outros, nem vale a pena nomeá-los, devido à sua pequena dimensão e falta de renome); ao contrário dos contemporâneos, porém, alguns chamam-lhes também Lusitanos*. Os Galaicos* são, pela parte oriental, vizinhos do povo das Astúrias* e dos Celtiberos*; os restantes, por seu turno, apenas dos Celtiberos*. Assim, o comprimento da Lusitânia* é de três mil estádios, mas muito menor é a largura entre o extremo oriental e a costa. O lado oriental é alto e escarpado; todavia, a região situada a seus pés é toda plana mesmo até ao mar, à excepção de algumas elevações que não são grandes. E por isso, decerto, Posidónio afirma que Aristóteles não atribui correctamente a causa das marés altas e baixas à costa (ao longo da Ibéria* e da Maurúsia*), pois terá dito que o mar se agita em fluxos e refluxos por causa de os promontórios serem altos e escarpados, os quais não só recebem a onda com resistência, como também a devolvem […]. Mas pelo contrário, para ser exacto: a maior parte deles é arenosa e baixa.

4. Ora a região de que estamos a falar é fértil e atravessada por rios grandes e pequenos, todos eles fluindo desde as partes orientais, paralelos ao Tejo*; e a maior parte deles tem navegações rio acima e uma grande quantidade de pepitas de ouro. Destes rios, os mais conhecidos, a seguir ao Tejo*, são o Mondego*, que permite uma pequena navegação rio acima, bem como o Vouga*. Depois destes o Douro*, que vem de longe e corre por Numância* e por muitas outras povoações de Celtiberos* e Vaceios*, e que é navegável para grandes embarcações por cerca de oitocentos estádios. Em seguida outros rios, e após estes o Letes*, a que alguns chamam Lima* e outros Belião*; também este flui desde território dos Celtiberos* e Vaceios*. Depois deste, o Báinis* (outros, no entanto, dizem Minho*), de longe o maior dos rios na Lusitânia* e igualmente navegável por oitocentos estádios (Posidónio afirma que este corre desde território dos Cântabros*). Diante da sua embocadura situam-se uma ilha e dois quebra-mares com ancoradouros. É justo louvar a natureza, porque estes rios têm as margens altas e capazes de receber o mar nos seus canais quando a maré sobe, de modo que não transbordam nem inundam as planícies. Foi precisamente este o limite da campanha de Bruto; mas mais adiante existem muitos outros rios, paralelos aos mencionados.

O que, diga-se de passagem, não é muito diferente do que praticamente todos os estudiosos afirmam hoje em dia. A parte Oeste da península partilhava o mesmo idioma, organização social e até mesmo a religião…

( Hamill-Keays, Seamus - CELTIC ORIGINS: IBERIAN DIMENSIONS )

( Hamill-Keays, Seamus - CELTIC ORIGINS: IBERIAN DIMENSIONS )

( Hamill-Keays, Seamus - CELTIC ORIGINS: IBERIAN DIMENSIONS )

Vêm algum padrão?

Terá sido o Luís de Camões o culpado desta identificação? não creio (e o Estado Novo muito menos mas as costas são largas e já não anda por cá ninguém a defendê-lo)! A 1ªedição dos Lusíadas foi em 1572:

no mesmo ano Dom Jerónimo Osório, Bispo do Algarve, identifica-se como Lusitano e publica, De Regis Institutione et Disciplina, livro VIII (1571):

em Colónia, 3 anos depois:

do mesmo autor em Colónia (1586, mas a impressão em Lisboa é de 1571) Manuel Rei da Lusitânia:

Olha, no De Gloria (1568), já se identificava como Lusitano e dedica o livro a um tal de João III, Rei da Lusitânia:

e no Nobilitate Civile, et De Nobilitate Christiana (1542)?

Yup… e na versão de Florença?

Pois… e ainda dedica a um Manuel, Rei da Lusitânia?!!?

Mau!? Deve ter sido o único com essa mania… pois… não:

André de Resende (1498-1573) também se identificava como Lusitano:

e escrevia sobre um Rei da Lusitânia:

e durante a dominação Filipina (impresso em Antuérpia)?

e olha como é que chamavam ao Filipe:

Hispaniae III et Lusitaniae II. Distinção clara…

E quem é o autor de Index Dioscoridis (1536)?

um tal de João Rodrigo Casto(!?!) que se reclama como Lusitano (e autor). A partir deste ano assume o nome de Amato Lusitano.

mais um de 1536:

e a paciência acabou em 1536…

Moral da história; nunca existiu um povo Lusitano mas sim um conjunto de povos que os Romanos despacharam para a história com o nome … isso.

Mas então sabemos os nomes dos povos que habitavam este rectângulo? Sim! Pela voz deles? infelizmente, não! Ou melhor… mais ou menos… temos inscrições em placas, em ex-votos, epitáfios, aras… também existem alguns documentos como o Paroquial Suevo, o Padrão dos povos, etc.. e é provável que os autores ainda mantivessem a memória colectiva dos seus povos.

Basicamente em coisas destas:

ou destas

Mas não há grandes certezas se se referem a tribos ou conjuntos mais alargados.

Suspeita-se que muitas inscrições pertenciam a indivíduos migrantes… nada disto é fácil…

Muitos outros ainda estão por descobrir ou perderam-se para sempre da memória dos seus descendentes… Como exemplo da aleatoriedade da fama, temos a placa da Ponte Romana de Alcântara, onde os povos que contribuíram para a sua construção deixaram o seu nome:

(Itinerários das Vias Romanas em Portugal)

A ponte já foi destruída e reconstruída algumas vezes. A placa é uma cópia da anterior feita no tempo da Rainha castelhana Isabel qq coisa do séc XIX. Há notícias, em 15xx, da existência de 4 placas e não 1. Potencialmente perdeu-se o nome de mais de 33 povos… ou não. Triste, não é? Mas temos uma placa…

Passemos aos nomes (da época romana) seguidos da zona onde foram achadas as inscrições ou alguma correspondência. Alguns são nomeados em documentos e por isso não se sabe muito bem onde estariam localizados:

  • ADDOUIENSIS, Bragança;
  • AEMINIENSES, Coimbra;
  • ARABRIGENSES, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Sendim, Rosal de la Frontera;
  • ARANDITANI, n/a.
  • ARAVI, Mêda (julga-se que sejam o mesmo povo da inscrição da ponte de Alcantara onde aparecem como Arani, talvez devido a um erro na transcrição);
  • ARAOCELENSES, Mangualde.
  • ARBUENSES, Mangualde;
  • ASSANIACENSES, Numão;
  • AOBRIGENSESAULOBRIGENSISAVIOBRIGENSIS, não há certezas se são a mesma coisa ou coisas diferentes :P , Arouca;
  • BANIENSES, Torre de Moncorvo;
  • BIBALI, Las Casas em San Amaro;
  • BRACARI, Braga.
  • CALLAECI, Não se sabe se ficam a Sul ou a norte do Rio Douro;
  • CALUBRIGENSES/ ABIANIENSES, Cabeceiras de Basto;
  • CELTICI, n/a.
  • COBELCI, Figueira de Castelo Rodrigo;
  • COELERNI, Celanova;
  • COLARNI, n/a.
  • CRONISENSIS, Fundão.
  • ELBOCORI, Oliveira do Hospital;
  • EQUAESI, n/a.
  • FIDUENAE, algures perto de Sanfins;
  • GROVI, algures para cima de Braga, talvez Viana do Castelo;
  • IGAEDITANI, Idanha-a-Velha;
  • INTERANIENSES, Viseu, Mérida;
  • LABARENSES, Mação;
  • LANCIENSES OPPIDANI, Penamacor;
  • LANCIENSES TRANSCUDANI, Guarda;
  • LAPPIOPPENSES, Vila Nova de Famalicão;
  • LEUNI, n/a;
  • LIMICI, Xinzo de Límia;
  • LUANCI, n/a.
  • LUBAENI, algures entre os rios Cávado e Lima;
  • MEIDUBRIGENSES, Freixo de Numão ou Mêda;
  • MIROBRIGENSES, estes estão por todo o lado, desde Santiago do Cacém, Cáceres, Badajoz, Salamanca ou Cidade Rodrigo. Suspeita-se de dois povos diferentes;
  • NEMETATIVolabriga era a capital. Isso fica onde? n/a;
  • OCELENSES LANCIENSES, algures entre a Covilhã e o Sabugal;
  • PAESURI, Resende ou Cinfães;
  • QUERQUERNI, Ourense;
  • SANBRUCOLENSES, Chaves;
  • SEURBI, algures a sul do rio Minho e a leste dos Leuni;
  • SEILIENSES, Tomar;
  • SERMACELENSES, Valpaços;
  • TALORES, n/a;
  • TAMAGANI, Verín;
  • TAPORI, ou Castelo Branco ou Oliveira do Hospital ou noutro lado qq. Estes deixaram inscrições por todo o interior desde a Guarda até Reguengos de Monsaraz;
  • TUBENENSES, Santa Luzia;
  • TURDITANI, Beja e Mértola (poderá ser um erro de transcrição de Tuedetan);
  • TURDETANI, algures entre a Andaluzia e o sul de Portugal;
  • TURDULI, algures entre o rio Guadiana e rio Guadalquivir;
  • TURDULI VETERES, situados a sul do rio Douro;
  • TURODI, Chaves;
  • VETTONES, algures entre os rios Douro e Tejo;
  • ZOELAE, habitavam um território entre Zamora e o Nordeste de Portugal. Achou-se uma placa de bronze com um pacto de hospitalidade entre dois grupos tribais do povo dos Zoelas, os Desoncos e os Tridiavos;

Estão a ver como a designação «Lusitanos» é mais simpática para a sanidade mental?

Referências:

Guerra, A. (2010) - A propósito dos conceitos de "Lusitano" e "Lusitânia". Paleohispanica, 10, 81-98. Zaragoza: Institución Fernando el Católico.

Itinerários das Vias Romanas em Portugal

Celtic Origins: Iberian Connections

Formation of the Indo-European branches in the light of the Archaeogenetic Revolution

The Celts in Iberia: an overview

Celtic from the West. Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language, and Literature

HispaniaEpigraphica Online Database - Search

Notas de rodapé



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