sábado, 5 de junho de 2021

Provavelmente Alegria: Protopoema.

 .Do novelo emaranhado da memoria,

da escuridão dos nós cegos,

puxo um fio que me aparece solto.

Devagar o liberto,de medo que se desfaça entre os dedos.

E´um fio longo ,verde e azul,com cheiro de limos,

e tem a macieza quente do lodo vivo.E´um rio.

Corre-me nas mãos ,agora molhadas.

Toda a agua me passa entre as palmas abertas ,

e de repente não sei se as águas nascem de mim,ou para 

mim fluem.

Continuo a puxar ,não ja memoria apenas,mas

o próprio corpo do rio.

sobre a minha pele navegam barcos ,e sou

também os

barcos e o céu que as cobre e os altos 

choupos que 

vagarosamente deslizam sobre a película 

luminosa dos olhos.Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre

duas águas como os apelos imprecisos 

da memoria.

Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.

Ao fundo do rio e de mim ,desce como um

lento e firme pulsar do coração.

Agora o céu esta mais perto e mudou de cor.

E´todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo

acorda o canto das aves.

E quando num largo espaço o barco se detêm ,

o meu

corpo despido brilha debaixo do sol ,

entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.

Ai´ se fundem numa só´verdade as lembranças confusas

da memoria e o vulto subitamente anunciado 

do futuro.

Uma ave sem nome desce donde não sei e 

vai pousar

calada sobre a proa rigorosa do barco.

Imóvel,espero que toda agua se banhe de

azul e que 

as aves digam nos ramos por que são altos os

choupos e rumorosas as suas folhas.

Então,corpo de barco e de rio na dimensão do

homem,sigo adiante para o fulvo remanso que 

as espadas

verticais circundam.

Ai´,três palmos enterrarei a minha vara ate´a 

pedra viva.

Havera o grande silencio primordial

quando as mãos se

juntarem as mãos.

Depois saberei tudo.      Jose Saramago.




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