.Mal iniciara seu discurso,o deputado embatucou:
--- Senhor Presidente: não sou daqueles que...
O verbo ia para o singular ou para o plural ?No plural soava melhor.Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem --que recusa?-- ele tão facilmente caía nelas ,e era logo massacrado com um aparte.Não sou daqueles que...Resolveu ganhar tempo:
---- Embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades,como representante do povo nesta casa,não sou...
Daqueles que recusa,evidentemente.Como e´que podia ter pensado no plural ?Era um desses casos em que os gramáticos registram nas suas questiunculas de português: ia para o singular,não tinha duvida.Idiotismo de linguagem ,devia ser.
---- Daqueles que,em momentos de extrema gravidade ,como este que o Brasil atravessa...
Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:
---Não sou daqueles que ...
Daqueles que o que ? Qualquer coisa,contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido logo de saída.Mas a concordância ?
Qualquer verbo servia,desde que conjugado corretamente,no singular.Ou no plural:
---Não sou daqueles que,dizia eu--- e e´bom que se repita sempre,senhor presidente,para que possamos ser dignos da confiança em nos depositada...
Intercalava orações e mais orações ,voltando sempre ao ponto de partida,incapaz de se definir por esta ou aquela concordância.Ambas com aparência castiça.Ambas legitimas.Ambas gramaticalmente lídimas,segundo o vernáculo:
---- Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.
Ambas legitimas? Não,não podia ser .Sabia bem que a expressão "daqueles que"era coisa já estudada e decidida por tudo quanto e´gramaticoide por ai,qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:
--- não sou daqueles que,conforme afirmava...
Ou ao singular? Ha´exceções ,e aquela bem podia ser uma delas..Daqueles que.Não sou UM daqueles que.Um que recusa,daqueles que recusam.Ah! o verbo era recusar:
--- Senhor presidente.Meus nobres colegas.
A concordancia que fosse para o diabo.Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura ,disposto a tudo,afirmando não ser daqueles que ...
---Como ?
Acolheu a interrupção com um suspiro de alivio:
---Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.
Silencio. Ninguem dera aparte algum.
---Vossa excelencia,por obsequio,queira falar mais alto,que não ouvi bem--- e apontava ,agoniado,um dos deputados mais proximos.
----Eu ? Mas eu não disse nada...
----Terei o maior prazer em responder o aparte do nobre colega.Qualquer aparte.
O silencio continuava.Interessados,os demais deputados se agrupavam em torno do orador ,aguardando o desfecho daquela agonia ,que agora ja era,como no verso de Bilac,a agonia do herói e a agonia da tarde.
---Que e´que você acha ?---Cochichou um.
---Acho que vai para o singular.
----Pois eu não:para o plural,e´logico.
O orador prosseguia na sua luta:
---Como afirmava no começo de meu discurso,senhor presidente...
Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa.Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio presidente da mesa:por favor,apura ai pra mim como e´que e´,me tira desta...
---- Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.
----Apenas algumas palavras ,senhor presidente,para terminar o meu discurso :e antes de terminar,quero deixar bem claro que,a esta altura de minha existência,depois de mais de vinte anos de vida publica...
E entrava por novos desvios:
---Muito embora...sabendo perfeitamente...os imperativos de minha consciência cívica...senhor presidente...e o declaro peremptoriamente...não sou daqueles que...
O presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara.Não havia mais por onde fugir:
----Senhor presidente,meus nobres colegas!
Resolveu arrematar de qualquer maneira.Encheu o peito e desfechou:
---Em suma:Não sou daqueles.Tenho dito.
Houve um suspiro de alivio em todo o plenário ,as palmas romperam.Muito bem"Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.
Sabino,Fernando.Os melhores Contos.RJ:Record,1986.
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