terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Hipatia.

 

Qual tragédia na história da humanidade mais ficou marcada em sua memória?

A história humana tem milhares de anos, e MUITAS coisas já foram feitas de terríveis, da história de Blanche Monnier ao Holocausto, motivos não faltam para encher essa resposta com as mais tristes e profundamente injustos atos como exemplos do que houve/há de mais terrível no nosso planeta.

Porém irei puxar da memória uma das experiências que definiu muito a pessoa que sou hoje, e que ainda me inspira a me tornar o melhor de mim, em tempos difíceis: A história de Hipátia de Alexandria.

"Hipátia de Alexandria", gravura de Elbert Hubbard, 1908.

Eu conheci a história dela por volta dos 21 anos de idade, em meados de 2012, e jamais esqueci o misto de admiração, impotência e amargura - que senti ao terminar de ler todos os ocorridos de sua vida.

Nos meus estudos sobre História, eu lembro que esbarrava com muitas figuras masculinas nobres e louváveis, de Arquimedes e Évariste Galois à Galileu e Isaac Newton. Mas lembro-me que havia uma ausência enorme de mulheres realmente, realmente intrigantes e únicas.

Nas minhas pesquisas, eu lia algumas histórias e pensava "Hm, que legal, foi um bom exemplo/fez um bom papel social" etc… porém tudo mudou quando comecei a ler a história de Hipátia…

… Ela parecia ser perfeita em todos os aspectos: um Colosso Intelectual, Inventora, e prolífica em Várias áreas de conhecimento. Bom… agora não lembro exatamente de como foi toda a sequência da leitura, mas eu li um bocado sobre ela, e meu encanto só cresceu e cresceu a cada nova página. Até que veio o maior choque: ela aparentemente jamais se casou, e jamais sustentou relações com nenhum homem.

  1. Hipátia nunca foi casada e, de acordo com historiadores, provavelmente levou uma vida de celibato 

… Eu me identifiquei muito naquele momento, pois aos 20 anos de idade - antes de me descobrir "demissexual" eu tive uma fase profundamente "espiritual" e me considerava abertamente um Celibatário Clerical, então eu entendia perfeitamente o que era querer viver uma vida de estudos e entendimento, com interesse nulo em relações. Fiquei encantado só de imaginar que finalmente havia encontrado um ícone feminino tão nobre e disciplinado, e com uma ótica tão próxima.

"Escola de Atenas", pintura de Rafael Sanzio. Hipátia ao centro, vestindo branco.

Imaginar que ela conseguiu erguer uma reputação da qual eu jamais havia encontrado igual, e ainda ver que se dedicou aos estudos a vida inteira - só fez meu fascínio aumentar.

Considere que naquela época, ser mulher e viver apenas de suas próprias obras e estudos, sem um marido - e ainda ser referência intelectual para toda uma cidade, com sua reputação repercutindo por toda uma nação - não era NADA fácil. Eu fiquei hipnotizado pela leitura.

  1. O historiador cristão Sócrates de Constantinopla, contemporâneo de Hipátia, a descreve em sua História Eclesiástica: [21] 
  2.  
  3. Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha do filósofo Theon, que alcançou tais realizações na literatura e na ciência, que ultrapassou de longe todos os filósofos de seu próprio tempo. Tendo sido bem-sucedida na escola de Platão e Plotino, ela explicou os princípios da filosofia a seus ouvintes, muitos dos quais vieram de longe para receber suas instruções. Por causa do autodomínio e da facilidade de modos que adquirira em conseqüência do cultivo de sua mente, não raramente aparecia em público na presença dos magistrados. Nem se sentia envergonhada de ir a uma assembleia de homens. Pois todos os homens, por sua extraordinária dignidade e virtude, a admiravam ainda mais. 

Pouco sobreviveu (do que poderia ter sobrevivido) de seus escritos, e há algumas menções à ela por seus contemporâneos. Em uma carta escrita por volta de 395 a seu amigo Herculianus, Synesius descreve Hipatia como:

  1. "... uma pessoa tão renomada, sua reputação parecia literalmente incrível. Nós vimos e ouvimos por nós mesmos aquela que honrosamente preside os mistérios da filosofia." 

"Hipátia", por Alfred Seifert, 1901.

Continuei lendo…

Continuei lendo…

… Olha… eu posso não me lembrar exaaatamente de toda a sequência de eventos, né? Afinal isso foi em meados de 2012 eu acho. Mas eu lembro EXATAMENTE como foi o momento em que li o parágrafo sobre a morte dela. Mas antes me diga:

Você já passou por algum momento de absoluta descrença?

… O tipo de situação que simplesmente te paraliza

… e você não consegue reagir de forma nenhuma - como se seu cérebro não conseguisse processar a situação

… ou quisesse imediatamente esquecer o que acabou de ler/ouvir e rejeitar aquela realidade?

… pois é… aquele foi o meu momento de terror.


… Acontece que Hipátia não seguia as convenções sociais de sua época, que reservavam espaços intelectuais apenas aos Homens, e tornava a mulher uma coadjuvante da ordem social. Hipátia era uma mulher independente, sábia, autosuficiente - e com o passar dos anos, sua reputação à concedeu substancial relevância política em Alexandria - como é de se esperar, quando você é extremamente competente em todas as áreas possíveis, e só gera mais e mais admiradores.

Porém havia um "problema" - ela era pagã. Todos os seus alunos eram cristãos e ela respeitava o Cristianismo, porém o contrário não parecia ocorrer - pelo menos não no caso dela. Seus esforços intelectuais estavam voltados para tentar provar que a Terra girava ao redor do Sol - e isso ia totalmente contra os ensinamentos da época…

Alexandria naquela época era tomada por vários atritos públicos onde Judeus, Pagãos e Cristãos desejavam exercer influência política sob aquela cidade:

"Pagãos eram forçados à converterem-se ao Cristianismo. Judeus foram expulsos da cidade. E Hipátia, recusando-se à converter-se, assim como também fez Orestes, seu amigo e governador, foi envolvida em boatos políticos e acusada de herege, uma bruxa-pagã."

O Arcebispo Cirilo costumava ficar frustrado com a popularidade de Hipátia e sua amizade com o prefeito Orestes. O cronista cristão João de Nikiu explica a situação do ponto de vista de Cirilo:

  1. E naquela época apareceu em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipátia, e ela era devotada em todos os tempos à magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela enganou muitas pessoas com seus ardis satânicos. E o governador da cidade [Orestes] a honrou muito, pois ela o havia enganado com sua magia. E ele parou de frequentar a igreja como era seu costume. (Deakin, 148) 

… Num ato que parece ter sido retaliação de Cirilo - Arcebispo de Alexandria - por ter falhado em convertê-la ao Cristianismo - o estudioso Mangasar M. Mangasarian descreve a cena que se segue, ocorrida em Março/415 d.C, como registrada por historiadores antigos:

Na manhã seguinte, quando Hipácia apareceu em sua carruagem em frente à sua residência, de repente quinhentos homens, todos vestidos de preto e com capuzes, quinhentos monges famintos das areias do deserto egípcio - quinhentos monges, soldados da Cruz - como um furacão negro, desceu a rua, subiu a bordo de sua carruagem, e, puxando-a de seu assento, arrastou-a pelos cabelos de sua cabeça em um - como direi a palavra? - em uma igreja!

Alguns historiadores afirmam que os monges lhe pediram para beijar a cruz, para se tornar cristã e entrar para o convento, se ela quisesse que sua vida fosse poupada.

… De qualquer forma, esses monges, sob a liderança do braço direito de São Cirilo, "Pedro, o Leitor", vergonhosamente a despiram e ali, perto do altar e da cruz, rasparam sua carne trêmula de seus ossos com conchas de ostra. O chão de mármore da igreja estava salpicado com seu sangue quente. O altar, a cruz também estavam salpicados, devido à violência com que seus membros foram dilacerados, enquanto as mãos dos monges apresentavam uma visão revoltante demais para ser descrita. O corpo mutilado - com o qual os assassinos festejavam seu ódio fanático - foi então lançado nas chamas. (6)

Quando eu li estas palavras, eu lembro que fiquei incrédulo e paralisado por vários segundos. Meu corpo ficou estático como uma rocha enquanto em minha cabeça eu tentava rejeitar a possibilidade desse cenário brutal ter acontecido, somente dos meus olhos caíam lágrimas. Toda aquela cena foi muito real pra minha imaginação, e eu senti a angústia de ver uma pessoa tão nobre ser vítima do fanatismo religioso mais uma vez - assim como Giordano Bruno, Galileu Galilei, entre diversos outros…

Eu chorei - chorei pela injustiça.

… após alguns segundos eu rangi meus dentes, e chorava pela mais pura e sincera raiva. Por mais estranho que pareça, pra você ter uma noção do quanto aquele momento me perturbou, eu verbalizei em voz alta e em pensamento diversas vezes: "Me desculpa, me desculpa não estar lá pra te proteger."

Me lembro que a sensação de impotência nunca foi tão real - lamentei por vários minutos a impossibilidade de voltar no tempo e salva-la daquela selvageria…

… Eu chorei e muito - mas lembro que foi um choro sem emitir nenhum som, e de olhos abertos, sem piscar, com o corpo estático, onde só as lágrimas continuavam a cair (segundo minha memória se recorda do momento).

Até hoje eu quero preservar a memória dela como o ser humano mais digno e nobre de que já ouvi falar. Essa história me marcou muito.

No futuro, ainda irei dedicar muito tempo em memória à ela - um livro, uma pintura, um busto, poemas - ainda não sei… mas certamente farei algo para elevar a memória da que para mim, foi a mulher mais digna que já existiu.


  1. Após a morte de Hipácia, a Universidade de Alexandria foi saqueada e queimada por ordem de Cirilo, templos pagãos foram demolidos e houve fuga em massa de intelectuais e artistas de Alexandria. Cirilo mais tarde foi declarado SANTO pela igreja por seus esforços em suprimir o paganismo e lutar pela "verdadeira fé". A morte de Hipátia há muito é reconhecida como um marco na história, delineando a era clássica do paganismo desde a era do Cristianismo. 

  1. Alexandria ainda era um grande centro de aprendizado nos primeiros dias do cristianismo, mas, à medida que a fé cresceu em adeptos e poder, tornou-se cada vez mais dividida pela luta entre facções religiosas. Não é exagero afirmar que Alexandria foi destruída como um centro de cultura e aprendizado pela intolerância religiosa e que Hipátia passou a simbolizar essa tragédia a ponto de sua morte ter sido citada como o fim do mundo clássico. 

Eu nunca vou esquecer isso.

Nunca.


Fontes:

[1] A primeira filósofa, astrônoma e matemática da história: Hypatia de Alexandria! Mulheres Pioneiras - Anima Mundhy

[2] Hypatia of Alexandria

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