terça-feira, 13 de julho de 2021

CEUTA.

 Ao tomar Ceuta em 1415, Portugal iniciara um projeto de expansão para o Norte de África.

(Paineis da Estação de S. Bento, no Porto)

Em 1436 coloca-se um dilema: deveria ou não Portugal prosseguir a sua expansão no Norte de África? Para consolidar a sua presença no território, tornava-se aliciante para Portugal conquistar a cidade de Tânger: “um ótimo porto de mar e uma situação estratégica privilegiada, perto do estreito de Gibraltar, na costa atlântica”.

Contudo, planear uma campanha militar para este alvo estratégico, reunir exército e fundos, conseguir uma opinião consensual, ponderar prós e contras de tal expedição não seria fácil para D. Duarte (que reinava desde 1433). Não era possível tomar de ânimo leve a decisão de avançar para Tânger. Também não era uma decisão que o monarca pudesse tomar sozinho; por isso mesmo em 1436, D. Duarte convocou cortes gerais para sondar a opinião dos estados e dos notáveis do reino sobre a possibilidade de Portugal avançar numa nova conquista. Em 1436 o Papa Eugénio IV fez chegar ao reino por D. Gomes, abade de Florença, uma Bula de Cruzada, autorizando os portugueses a prosseguirem numa possível expedição, dando a entender que “a guerra é legítima, caso se convertam os muçulmanos e se pregue o evangelho”. Esta passou a ser a opinião do clero português.

Os conselheiros do rei estavam divididos. O Conde de Arraiolos, D. Fernando (neto de D. João I por ramo ilegítimo da família), era contra a campanha: na sua opinião, Portugal não tinha estruturas para encetar tal empresa naquele momento. O Conde de Ourém, D. Afonso, seu irmão, concordava em dar apoio a Castela na luta contra os muçulmanos de Granada, contudo pensava que não se devia avançar para Tânger; se Portugal prosseguisse nesse sentido seria necessário pedir ao povo o pagamento de mais impostos, que este não iria suportar. Estas distintas opiniões sobre a situação de Portugal no Norte de África são ainda mais notórias quando nos detemos a analisar as opiniões dos Infantes da casa de Avis: se de um lado D. João e D. Pedro eram mais reservados nas suas expectativas sobre a expedição e o cenário que viam não parecia ser assim tão exaltante, D. Henrique e D. Fernando afirmavam convictamente que Portugal deveria avançar na expedição. Vejamos agora o parecer de D. João: à semelhança de D. Fernando, D. João não tinha participado na tomada de Ceuta em 1415, nem tinha sido armado cavaleiro; para ele a campanha não era viável e seria uma hipocrisia afirmar que a guerra se faria por motivos religiosos, uma vez que a Bíblia recomenda a evangelização, não a morte do inimigo; se a campanha fosse encetada por motivos económicos e busca de riqueza, não seria mais do que uma ilusão, na medida em que se podia prever que as perdas seriam maiores que os ganhos muito incertos; apesar disso D. João não parecia ter uma opinião clara, não a declarando expressamente. D. Pedro parece mais seguro e pessimista relativamente à campanha: o reino não tem condições económicas e financeiras para financiar tal expedição; além disso o panorama internacional não estava favorável para que Portugal pedisse um empréstimo; acrescenta ainda que Portugal não teria como povoar o Norte de África; seria de suspeitar que Tânger fosse o próximo alvo dos portugueses, logo o exército muçulmano estaria prevenido para um possível ataque; para terminar (fazendo salientar os rumores da relação não amistosa de D. Pedro e D. Henrique) a opinião do Infante D. Henrique não deveria ser tomada em conta. Mas o que pensava D. Henrique? Sendo um dos maiores defensores da expedição, afirmava entusiasticamente o ideal de cruzada, que deveria animar os portugueses a lutar com alegria pela causa “santa”, sem medo, combatendo de frente o inimigo da fé. Contava com o apoio do seu irmão D. Fernando que, segundo nos narra Rui de Pina na Crónica de D. Duarte, teve uma conversa com o seu irmão sobre os seus anseios quando se encontraram em Almeirim: queria mostrar que era um digno filho de D. João I, honrando no Norte de África a sua família e o reino; queria ser armado cavaleiro, pois não o fora em 1415; desejava aumentar o seu património; além disso a guerra ao “infiel” muçulmano seria justificada perante Deus, na medida em que se luta por expandir os domínios da Cristandade. Para terminar, segundo relata Rui de Pina, D. Fernando teria feito uma espécie de chantagem psicológica com o seu irmão, ameaçando-o de que se a campanha não fosse realizada iria para outro reino da Cristandade. Terá sido eficaz esta conversa que D. Fernando teve com o rei D. Duarte pois D. Fernando era muito chegado ao irmão e um dos seus conselheiros pessoais.

(Rainha D. Leonor)

O papel da rainha D. Leonor, aliciada por D. Henrique e D. Fernando para convencer D. Duarte a autorizar a campanha a Tânger, com a promessa de que os Infantes iriam adotar o sobrinho, D. Fernando (filho dos monarcas) fazendo-o herdar os seus bens, foi fundamental em todo este processo. Tal atitude da rainha levou a que alguns a considerassem como manipuladora, como Oliveira Martins, que deu um sentido novelístico a este episódio da história de Portugal. Todo este “teatro” montado em torno de D. Duarte acabou por pressionar o rei na sua decisão favorável à expedição, embora sempre com muitas dúvidas e apesar de a maioria manifestar um parecer negativo. A decisão estava assim validada e havia que organizar a logística da expedição. Nesse sentido, D. Duarte formulou um plano detalhado dos procedimentos a ter em conta na campanha.

Assim partiu a armada portuguesa de Lisboa a 22 de agosto de 1437, chegando a Ceuta no dia 26 de agosto, passados 4 dias. Seria de esperar da expedição um número de 14 000 homens. No entanto:

« foram 3500 homens de armas a cavalo, 500 besteiros montados, 2500 besteiros desmontados, 7000 peões e 500 criados, estes últimos não fazendo parte do contingente militar (...) Contudo ao analisarmos estes números, verificamos que era impossível levar 4.000 cavalos nos barcos. (...) Dos 14.000 que estavam estimados, já contando com os que viriam nos barcos fretados pelo reino, somente 8000 partiram para Tânger. D. Henrique deu pela falta de soldados, mas, obstinado, continuou com o projeto. Faltavam barcos que traziam soldados das regiões germânicas, Inglaterra, Flandres e França.»

Partiram três Infantes: D. Pedro, D. Henrique e D. Fernando; D. João ficaria no Algarve para prestar auxílio, se necessário. Os planos de D. Duarte não foram respeitados por D. Henrique. Chegando a Tânger tudo parecia correr mal (como se esperava) aos portugueses: “traídos” pelo clima, falta de alimentos e falta de condições favoráveis, foram fácil e rapidamente derrotados. Em outubro de 1437 os muçulmanos entraram em acordos com os portugueses. Hugo Moreira faz uma síntese das negociações:

« ( …) deixavam ir livremente os portugueses, apenas com a roupa que traziam vestida; todo o material militar, assim como os cavalos e todo o equipamento militar que estavam no arraial eram dados aos mouros; a cidade de Ceuta tinha de ser entregue aos mouros, assim como todos os mouros que aí estivessem cativos; D. Duarte teria que estabelecer com eles, por mar e por terra, paz definitiva (…); Sallah Ben Sallah dá seu filho como garantia de segurança de embarque dos cristãos, sem que haja confrontos; como garantia da segurança do filho ficam reféns Pedro de Ataíde, João Gomes de Avelar, Rui Gomes da Silva e Aires da Cunha; como garantia da entrega de Ceuta, assim como todos os seus cativos, ficou refém o Infante D. Fernando.”»

De facto, Portugal estava “condenado” desde o início; até para sair de Tânger nada foi facilitado. “Contas finais: D. Henrique e D. Fernando estiveram 37 dias em Tânger, 25 a cercar, e 12 cercados”.»

O Infante D. Henrique, talvez por vergonha ou culpa não regressou de imediato à corte portuguesa, ficando em Ceuta durante algum tempo. Tentou negociar com os muçulmanos o resgate do seu irmão, mas em vão. Escreveu ao rei de Castela pedindo ajuda e também escreveu a D. Duarte que desde logo o mandou regressar a Portugal; assim o Infante refugiou-se no Algarve, mas não é certo se alguma vez voltou a encontrar-se com o seu irmão, D. Duarte, que pouco tempo depois veio a falecer.

(Tânger)

Voltavam então os portugueses derrotados de Tânger; as perdas humanas eram consideráveis, os prejuízos económicos também; além disso, o orgulho português estava ferido. A situação não era nada favorável para o reino de Portugal e o rei D. Duarte tem um novo dilema em mãos: entregar Ceuta ou libertar D. Fernando? A decisão não se esperava fácil ou de rápida resolução.

Para tentar resolver esta situação, D. Duarte convocou as Cortes de Leiria em 1438 para saber a opinião dos estados. Se a decisão de prosseguir para Tânger dividiu opiniões, essa divisão foi ainda mais acentuada quando as consequências da derrota da campanha militar tinham de ser debatidas. Não devemos julgar apressadamente D. Duarte pela sua necessidade de ponderação quanto ao assunto: era um ser humano com o seu irmão mais novo, que lhe era chegado e seu conselheiro, cativo pelos muçulmanos; por outro lado, era o rei de um reino, tendo consciência da importância das suas decisões. Valeria a pena abdicar de Ceuta – resultado do projeto de um estado em crescimento por causa do Infante D. Fernando? Valeria a pena entregar a praça que levara ao sacrifício de tantos portugueses para resgatar um Infante de saúde frágil e duvidosa? Era necessário saber como gerir a situação e negociar. Em resultado das Cortes de Leiria em 1438, surgem quatro partidos. Um defende a entrega de Ceuta para a libertação de D. Fernando: Portugal fez um trato com os muçulmanos e não o cumprir seria uma desonra; tem como partidários D. Pedro, D. João e alguns nobres, também alguns concelhos. Um segundo partido, liderado pelo arcebispo de Braga, D. Fernando da Guerra em representação do clero, defende que Ceuta era património da Cristandade: já existia um bispado ali. Um terceiro partido defende que era necessário evitar soluções extremadas, era preciso negociar: trocar cativos, fazer uma cruzada a Marrocos, tentar negociações. Por fim um quarto partido defende que em caso algum se deveria entregar Ceuta: era uma cidade demasiado importante para trocar por um Infante que fora preso na sua própria ganância; era dessa opinião grande parte da nobreza que estivera ou investira em Ceuta e tinha como porta-voz o Conde de Arraiolos, D. Fernando.

Entretanto nenhuma decisão foi tomada e a situação não se resolveu. D. Fernando obteve permissão por parte do chefe muçulmano para escrever para Portugal, a D. Pedro, em 1438, dizendo na carta enviada o seguinte:

« Mui honrado Iffante Irmãao y amigo. Sempre pense ca antes da morte vos verja; mas non se aprageo Deos asi delho”, despedindo-se da seguinte forma “O mal ifortunado voso irmão mui amigo, o Iffante dom Fernando.»

Desde logo se pode entender a profunda tristeza na forma de escrever do Infante D. Fernando, quando afirma que morrerá sem voltar a Portugal ou a encontrar-se com a sua família; além disso constata que não é um afortunado, ou seja, é alguém infeliz e descontente com a sua situação. Na sua opinião Ceuta deveria ser entregue pela sua vida e pela vida dos seus companheiros. Esta carta gerou ainda mais angústia em D. Duarte, que segundo chama a atenção Rui de Pina, 13 teria morrido de remorso e sentimentos de culpa, pouco depois dos acontecimentos narrados: “e porém a teençom em que os mais se affirmáram, que a ElRey causára sua morte, foy a desigual tristeza e continoa paixaam que pella desaventura do socedimento do cerco de Tanger tomou”.

Morreu em Tomar, a 9 de setembro de 1438 vítima de peste, num ambiente de solidão. No seu testamento ordenou que libertassem o irmão, mesmo que fosse preciso entregar Ceuta; o seu pedido acabou por não ser respeitado.

Morrendo D. Duarte um novo problema se adivinhava: a sucessão. O seu filho, D. Afonso, (futuro D. Afonso V) era ainda criança e na regência do reino, após muita controvérsia e tensões políticas, ficou o seu tio, o Infante D. Pedro. Como já foi referido, D. Pedro era partidário da libertação de D. Fernando, e de facto o Infante cativo escreveu ao irmão uma última carta em 1441, pedindo auxílio. Várias tentativas foram levadas a cabo para resgatar o Infante, mas nenhuma foi eficaz: foram intercetadas ou rejeitadas pelos muçulmanos. D. Pedro acabaria por se afastar do assunto e o próprio D. Fernando desde 1441 parece ter-se resignado à sua condição; pelo menos não se conhece mais correspondência deste Infante para Portugal até à sua morte. Terminam assim os relatos da “humanidade” de D. Fernando, iniciando-se a construção da figura do mártir e santo que se lhe associam…

In https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/15237.pdf

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