quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Cleópatra.

 

O que Cleópatra acharia do Egito se o visse hoje?

Aposto que ela pensaria ser uma situação muito, muito esquisita. Imagine só:

A última rainha de um reino helenístico, governando um reino em frangalhos, com o gigantesco Império Romano batendo nas portas do palácio em Alexandria, e ver o Egito atual, sendo governado por um povo majoritariamente árabe seguindo uma religião monoteísta. Eu aposto que ela perguntaria a Hermes o que, pelas barbas de Zeus, anda acontecendo no que já foi um grandioso reino herdado por um dos companheiros de Alexandre, o Grande, se tornar em um governo num idioma e religião completamente diferentes de sua realidade. Afinal, onde estão todos os subordinados politeístas egípcios?

Aposto que algumas perguntas apareceram:

Alexandre, o Grande? Helenístico, assim como algo grego? Deuses gregos? Mas ela não era uma rainha egípcia? O que tem esse monte de coisa a ver com Cleópatra?

Eu peço desculpas, mas Cleópatra é um grande presente de grego nessa história. Cleópatra está tanto para ser egípcia, como o Lawrence da Arábia está para os árabes.

Lawrence da Arábia. Sendo que ele não é árabe, ele é britânico.

Brevemente contextualizando, Lawrence da Arábia é o apelido dado a um estrategista militar britânico que ajudou o Reino Unido em campanhas no Oriente Médio durante a Primeira Guerra Mundial. Porém ele não tem uma aparência (e nem nacionalidade) de árabe, concorda?

Mas ainda assim, devido ao que aconteceu historicamente, de fato, a Cleópatra tem um certo mérito em ser associada como uma "egípcia", mas para entender o porquê de minha anedota ter um monte de referência a coisas gregas, temos que entender um pouco da história sobre como é que diabos Cleópatra ficou conhecida como a Rainha do Egito apesar de não ter sido exatamente egípcia (e já deixo avisado que é uma longa história!) :

Alexandre o Grande foi o homem responsável pela existência de Cleópatra. Bem, tecnicamente falando.

Tudo começa com ele: Alexandre, o Grande. Não é surpresa para ninguém escutar o nome Alexandre, o Grande. Aposto que ele já foi mencionado em algum momento em nossas aulas de história.

Ele foi o rei dos Macedônios em 336 a.C., e ele conseguiu fazer uma das mais ambiciosas campanhas militares da história: vindo de seu reino na Macedônia, ele conseguiu unificar militarmente as cidades-estado da Grécia, subjugar territórios inteiros, desde o Império Aquemênida, da Pérsia (atual Irã), os reinos da mesopotâmia, como a Babilônia, até ao reino egípcio - desses dos faraós mesmo, e chegou longe a ponto de quase bater as portas aonde estaria a atual Índia.

Isso tudo em 323 antes de Cristo, 13 anos de campanha militar, com lanças, arcos e cavalaria da antiguidade. Esse homem e seu exército conseguiu conquistar o que muitos acreditavam na época ser o mundo inteiro. De fato, uma das campanhas militares mais impressionantes da história de toda a humanidade. Porém, seu reinado acabou tão rápido quanto sua expansão: ele morreu na região da Babilônia por volta de 323 a.C, cuja causa de sua morte ainda é um mistério. Curiosamente alguns babilônios avisaram a ele uma profecia que anunciava seu declínio.

Com a morte abrupta e misteriosa de Alexandre, o que seria de seu gigantesco império? Quem seria o herdeiro de um território tão vasto?

E foi aí que entra a crise de sucessão dos Diádocos:

Os Diádocos eram os generais sucessores de Alexandre que estavam combatendo entre si pelos territórios conquistados por ele. É uma parte da história relativamente desconhecida, mas foi uma das mais fascinantes e estranhas também, esses reinos tinham o padrão de haver um sincretismo caldeado entre a cultura helênica (grega) e as culturas locais. E esses reinos são bem notórios por terem sido muito instáveis.

Mas, e onde Cleópatra entra nesse roteiro cinematográfico?

Você vê esse território em amarelo no mapa acima? Então, esse era o reino de Ptolomeu, um dos generais de Alexandre, num período chamado o Reino Ptolemaico. Nesse reino, ao menos na elite e população grega que habitaram o Egito nessa época, houve uma fusão meio esquisita entre a cultura helênica e os costumes egípcios da região, como por exemplo, Ptolomeu ser coroado como o faraó, enquanto ainda mantinha os rituais de cultos vindos de sua cultura natal à Grécia.

(Traçando uma fofoca aqui, dentre alguns dos costumes adotados por Ptolomeu e sua família real, foi o costume da nobreza egípcia de incesto entre irmãos, pois era visto como uma forma de manter o sangue divino puro. Vish!)

Enfim, chegando finalmente à Cleópatra, nós sempre acabamos por nos referir à Cleópatra VII, última governante do Reino Ptolemaico. Não tive oportunidade de estudar sobre seu reinado muito a fundo - toda essa história da morte de Alexandre e a guerra de sucessão é uma coisa que dá um baita de um nó na cabeça, ainda mais na decadência do reino dela em 30 a.C. , mas a característica mais marcante do reinado dela, e possivelmente a origem de sua fama como a Rainha do Egito, foi sua possível relação amorosa com Julius César, tendo supostamente um filho com ele, apelidado de Cesarião.

Culturalmente, Cleópatra era helênica, mas tinha uma certa influência da cultura egípcia. Tanto que ela foi a primeira e única nobre ptolomaica a aprender o idioma egípcio (essa nota no Wikipedia explica um pouco do porquê isso ser algo estranho, considerando a nobreza ptolomaica). É necessário pensar que, nesse períodos do Diádocos, esses reinos eram governados por uma nobreza grega, e que geralmente se recusavam, ou somente superficialmente misturavam-se com a cultura local. Mesmo sendo uma rainha nos moldes do reino egípcio, ela ainda assim era grega e viveu sua vida como uma nobre grega em solo egípcio.

Dito isso tudo, com um pouco mais de base na história de sua controversa e confusa figura, perguntemos mais uma vez: o que Cleópatra pensaria do Egito atual?

Provavelmente ela pensaria que o Egito virou outro planeta. Analisemos os contextos:

  1. Cleópatra, uma rainha de nobreza grega;
  2. O grego era a língua de prestígio;
  3. Haviam questões dinásticas, ou seja, uma monarquia;
  4. Estava sob a ameaça do Império Romano;
  5. Um contexto em que o politeísmo era a religião comum,

Imagine ver o Egito atual:

  1. Uma república semipresidencial
  2. Árabe sendo a língua de prestígio, nem um pouco parecido com o grego;
  3. Possui problemas geopolíticos que só fazem sentido em um governo contemporâneo (lembrem-se: o conceito de estado-nação só existiu após a Revolução Francesa, no século XIX!)
  4. Possui uma parceria com inúmeros países vizinhos;
  5. É um país onde a maioria é aderente ao Islã, uma religião monoteísta.

Se pararmos para pensar, toda a história por trás do Egito de Cleópatra até o Egito atual, é uma odisseia que não parece ter sentido um ser relacionado ao outro. Mas têm.

E é com isso que eu posso dizer que, se olharmos nos lugares certos, história pode acabar nos trazendo a tópicos cujo desenvolvimento é pura maluquice, algo que se tentarmos explicar para um alienígena, ele iria pensar que ficamos doidos.



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