As três metamorfoses de espírito de Nietzsche é um conceito explorado em sua principal obra: ''Assim Falou Zaratustra''. Nela, o filósofo estabelece três estágios pelos quais o indivíduo deve passar com o objetivo de atingir uma liberdade genuína, isto é, um grau de autonomia que independe de imposições externas, baseado apenas em concepções próprias:
''Três metamorfoses do espírito menciono para vós: de como o espírito se torna camelo, o camelo se torna leão e o leão, por fim, criança”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
Assim, Nietzsche introduz a metáfora por meio da figura do camelo. Os camelos são animais fortes, capazes de carregar inúmeros objetos, valores e crenças. Entretanto, toda a matéria que carrega independe de sua vontade, ao passo que foi colocada em suas costas por outros indivíduos. Curvado, este caminha sem qualquer questionamento acerca de seus próprios apetites. Aliás, em muitos casos, o camelo orgulha-se de todo o peso que carrega, associando a dor e o prazer em uma perspectiva futura de libertação — um mundo distante e utópico, por exemplo. Em uma servidão voluntária, o camelo compreende sua função no carregar, negligenciando seus desejos em detrimento dos benefícios superficiais oferecidos pelos aqueles que colocaram os pesos sobre suas costas: aprovação familiar, feedbacks positivos e afeto.
Para Nietzsche, todos nós nascemos e a vasta maioria de nós morreremos camelos. A partir do momento em que passamos a explorar o mundo ao redor, são colocados inúmeros valores sobre nossas corcovas. Assim, começamos o processo de carregar crenças externas, sempre com a convicção de que são nossas. O camelo acredita que suas decisões são autônomas, quando, na verdade, são apenas parte de um processo de padronização específico — controle social baseado em falsos axiomas e motivado por interesses distantes demais para compressão. Para o camelo, dizem que é preciso usar guardanapos, este então usa. Para o camelo, dizem que é preciso dizer 'muito obrigado', este então diz. Para o camelo, dizem que é preciso beber álcool para ter uma noite agradável, este então bebe. Com o tempo, o camelo passa a ser representado como uma amálgama de princípios externos, os quais pesam cada vez mais sobre suas costas.
Surge, então, uma dúvida. Afinal, por que Nietzsche está tão preocupado com o fato de colocarmos guardanapos sobre a boca? Por que o filósofo condena o camelo, de modo que é o estágio mais primitivo do processo de metamorfose?
Para Nietzsche, o problema não está necessariamente no guardanapo ou na cortesia, mas sim no fato de que tais gestos e movimentos independem da nossa escolha — são decisões tomadas por terceiros aplicadas sobre nós. Claro, nesses casos, as consequências não parecem ser tão graves — afinal um pouco de educação e gentiliza não machucam ninguém.
Porém, imaginemos outro cenário, em que um jovem de 19 anos termina o ensino médio e não sabe qual carreira seguir. Confuso, ele adora literatura e, em alguns momentos de lucidez, pensa em estudar Letras. Entretanto, seus pais, médicos, não toleram tal decisão, ao passo que consideram, levando em consideração o mercado de trabalho, inadmissível estudar literatura no Brasil. Após conversar horas e horas com o garoto, este é convencido: estudará medicina.
Perceba como, nesse cenário, a decisão tomada pelos pais determinou todo o futuro do menino. Este poderia ter sido um grande autor, lecionado em universidades ou escrito poemas. Porém, foi condenado a passar o resto da vida memorizando equações químicas e acidentes ósseos. Nesse sentido, a dúvida de Nietzsche é simples: por que terceirizar suas escolhas, quando aquele que mais sabe sobre si é você mesmo?
Enquanto Immanuel Kant discorre sobre um imperativo categórico, ou seja, uma moral única e universal, Nietzsche descarta tal possibilidade. Baseando-se sobre o pessimismo de Schopenhauer, o filósofo alemão rompe com filosofia moderna platônica, de modo a negar qualquer perspectiva de criação de uma moral coletiva. Para Nietzsche, a concordância é um erro, ao passo que padroniza e desconstrói. Cabe ao próprio indivíduo fundar sua própria moral pois, independente das circunstâncias, as ferramentas para tal trabalho sempre estiveram ao seu lado. É preciso, entretanto, coragem e bravura. É preciso ir ao deserto.
Alguns poucos camelos percebem a influência que estão submetidos. Conforme o peso aumenta, estes já não vêm sentido em toda sua carga e, em um movimento de desespero, caminham para o deserto. É no deserto, então, que Nietzsche aponta para o segundo estágio da metamorfose. Em seu limite, o camelo passa a questionar todos os valores que carrega em suas costas, de modo a remover cada um dos elementos presente em sua corcova. Por fim, despido de tais valores, o camelo torna-se leão.
O leão rejeita valores externos. O leão percebe que algumas tradições não apenas são desnecessárias, mas também nocivas a si próprio. De acordo com Nietzsche, o leão seria o estágio em que deveríamos estar ao nascer caso não tivesse sido empurrado sobre nós uma moral extrínseca. Assim, o leão é caracterizado pela negação. O leão diz 'não'. Se é exigido ao leão que use guardanapo, este diz 'não'. Se é exigido que fale 'muito obrigado', este diz 'não'. Se é exigido que beba álcool, este diz 'não'.
Nesse momento, de acordo com o filósofo, surge um enorme dragão chamado 'Tu Deves'. O dragão é representativo do restante meio social, aquele que impõe valores, crenças, princípios, normas e convicções sobre camelo. Em suas escamas, está escrito tudo o que o espírito deve fazer e seguir. Por isso, o dragão tenta de todas as formas persuadir o leão. Faz-se necessário, porém, que o leão mantenha-se resiliente, seguro de sua decisão. Caso resista, o leão vence o dragão. Assim, o dragão já não tem mais influência sobre sua negação. O leão atinge um novo grau de autonomia, caracterizada pela capacidade de negar o que lhe é imposto sem remorso ou questionamento.
Todavia, o espírito ainda não é livre. Sua liberdade é comprometida por dois motivos:
- Sua negação é uma resposta à uma moral extrínseca, logo ainda depende da existência de tais valores.
- A negação, por si só, não é suficiente para que o leão encontre seu próprio caminho. A negação não cria, apenas responde.
Nesse momento, então, ocorre a última metamorfose. O leão torna-se, assim, criança:
Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?
A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
A criança representa um novo começo, uma redenção. Despido dos valores do camelo e da negação do leão, a espírito pode, finalmente, explorar o mundo ao redor e, dessa forma, criar seus próprios valores. Em seu íntimo, a criança compreende que não há sentido na existência, ao passo que todos os dogmas são criações humanas. Logo, há uma autossuficiência na criação de verdades próprias. Assim, o espírito explora todas as possibilidades oferecidas pela existência de forma independente e genuína. A criança é indiferente às imposições externas; tem em si um entusiasmo próprio capaz de criar e construir. A criança, diferente do leão, é capaz de dizer 'sim'. Esse 'sim', porém, tem origem em sua própria alma, um lugar caracterizado pela solitude, calmaria e poucas certezas.
Na literatura nietzschiana, a criança é o estágio mais próximo do que o filósofo define como Übermensch, isto é, um indivíduo que vive sobre lei do eterno retorno, norteado pelo amor ao próprio destino: amor fati.
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