Dos filósofos modernos, Hegel é o meu favorito.
Por isso topei seu desafio. Nesta resposta vou esquematizar o que eu falaria numa aula inaugural de Filosofia sobre Hegel.
Há dois racionalistas modernos anteriores a Hegel: Descartes e Kant.
Descartes defendia que a razão aplicada pelo indivíduo cognoscente era a chave pra entender o mundo. Kant dizia que a razão era importante mas devia ser aplicada com prudência e amparada pela comunidade de estudiosos.
Quanta confiança depositada na capacidade de raciocinar, né? "A realidade se comporta de forma racional", é a grande aposta dos modernos.
Bom, Hegel dizia que a lógica e a razão eram insuficientes. E que não, a realidade NÃO é racional. Ela não age tão logicamente assim.
#TENSO
Hegel defendia que a chave para entender a realidade era outro instrumento intelectual que não a lógica e seus esquemas silogísticos. E esse outro instrumento é a dialética.
No grego, διαλεκτική, significa "o passeio das ideias". É uma forma de intelecção na qual você aceita que A é A, tudo bem; mas que A pode se encontrar com seu contrário, ~A, e mudar para A'. Dizendo de outra forma, você aceita que a realidade não é como uma coleção de selos onde cada item é um quadrinho estático num dado lugar e sempre será ele mesmo. Nada disso. A realidade é relacional e dinâmica. O devir é a regra.
Se você pensa apenas de maneira lógica, A = A e acabou. Se você pensa dialeticamente, você:
- assume que A nem sempre foi A e nem sempre será, pois tudo faz parte de um processo histórico dinâmico. Tudo flui;
- A só é A porque está em relação com B, C, D, E, F, etc. Dizendo de outra forma, ser A é também ser um monte de outras coisas em diversas relações.
Daí vale a pena agora falar do que talvez seja o conceito central de Hegel: Aufheben. Essa palavra alemã pode ser traduzida parcamente como "suprassunção", ou "suspensão". Um exemplo clássico de Hegel para entender esse conceito:
1 - Eu tenho trigo (T). Mas não quero trigo. Quero pão. Preciso suspender o trigo (No sentido de cancelá-lo).
2 - Então eu nego o trigo, transformando-o em massa (que é ~T). Notou, contudo, como a massa é a negação do trigo, sim; mas ao mesmo tempo é uma forma de preservar o trigo? Preciso de trigo pra fazer massa. Mas só faço massa porque nego o trigo. A massa é a antítese, o trigo é a tese. Mas notou como tese e antítese mantém certa identidade? Se antes suspendi/cancelei o trigo, agora estou suspendendo o trigo no sentido de preservá-lo. Suspender como quem protege, coloca num lugar de destaque.
3 - Agora eu pego a massa, asso e faço pão. O pão é trigo (T), é trigo negado na massa (~T), mas ao mesmo tempo é algo além de trigo e massa (T'). O pão é a suspensão final do trigo e da massa. Suspender no sentido agora de "evoluir".
Revisando, suprassunção é ao mesmo tempo:
- Suspender como negar, cancelar;
- Suspender como preservar, guardar;
- Suspender como elevar, evoluir.
Se você só pensa logicamente, pão é pão (Princípio de Identidade).
Se você tem treino dialético, consegue fazer todo o trajeto da aufheben do pão, e entender que ele é trigo preterido (T), trigo preservado enquanto massa (~T) e massa evoluída enquanto pão (T'). Tudo ao mesmo tempo.
O que Hegel nos diz é que toda a realidade, toda a fucking realidade, funciona por esse esquema de Aufheben.
Tudo que parece simples esconde complicações absurdas. Todas as ideias na mente que a gente teima, por preguiça, em ver como uma coleção de fotografias são na verdade filmes.
Levando a dialética às últimas consequências, Hegel criou um modelo explicativo para a Epistemologia, no livro "Fenomenologia do Espírito".
Nessa obra ele mostra como a relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido evolui para a percepção sensorial;
- depois pro entendimento;
- depois para a consciência de si;
- depois para o encontro com outro sujeito também consciente nas relações sociais;
- depois para os conflitos e busca de reconhecimento nessas relações, mediadas por objetos;
- depois para a incorporação desses relações externas na consciência do sujeito, que se vê como sujeito para si mesmo, reflexivamente;
- depois para compreensão racional da realidade como sendo feita pelo sujeito, outros sujeitos e objetos;
- depois integração com o absoluto, quando a Aufheben tiver terminado de abarcar todas as relações possíveis. Ufa !
Não satisfeito de refundar a Epistemologia, Hegel partiu pra Ontologia.
Pegou sua boa e velha aufheben e demonstrou, no livro "Ciência da Lógica", como:
- A verdade do Ser é que ele se integra ao Nada, gerando o Devir. Tudo é dinâmico, fluído;
- O Ser tomado racionalmente só existe em relação para outro Ser que é distinto de si mesmo, isto é, um Ser-Aí. A dialética entre Ser e Ser-Aí gera o Ser-Para-Si, que deve ser o verdadeiro objeto das ciências;
- Não há essências estáticas das coisas. No lugar disso, há apenas redes de relações que geram momentaneidades de coisas. Essas redes de relações são como essências dinâmicas pois podem, como no exemplo que vimos do pão, mudar;
- Da dialética entre Ser e Essência (dinâmica), surgem os conceitos, que são configurações hierarquizadas de relações;
- Os conceitos, para a cognição do sujeito, são um encontro dialético de ideias universais com ideias particulares, gerando silogismos. Ex.: "Pão francês é um tipo (particular) de pão (universal)";
- Os conceitos, do ponto de vista científico e objetivo, são resultantes da dialética das partes com as relações, formando unidades que têm propósitos definido a partir de como suas partes se relacionam;
- Da dialética entre conceitos-para-o-sujeito com os conceitos-objetivos nascem as ideias;
- A ideia evolui para conhecimento ao se integrar com sujeitos vivos, de carne e osso, gerando, no final dessa dialética, a ciência perfeita do Absoluto, onde as distinções entre sujeito e objeto são dissolvidas;
- O propósito da Ciência e da Filosofia, portanto, é alcançar esse entendimento absoluto das ideias, onde todas as relações entre as partes da realidade estarão esclarecidas;
- A Ciência não evolui gerando conceitos, mas sim SISTEMAS de conceitos. Sistemas que sejam coerentes, consistentes, e abarquem cada vez mais conceitos de forma harmônica, para assim integrar ideias, até que o propósito seja atingido (o entendimento do Absoluto).
É , eu sei, eu sei… Idealismo Alemão é f*** !!!
Tem certeza que é uma boa ideia dar uma aula inaugural, isto é, pra calouros de Filosofia, sobre Hegel? hmm… Podemos dialetizar isso?
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