domingo, 4 de julho de 2021

A serpente e o pensar.

 .A imagem da serpente percorre,obsessiva a obra de Valery,e,de certo modo,a emblematiza.Em "La jeune Parque"(1917),ela se insinua como projeção da sensualidade---- "a serpente interior",como a denomina La Rochefoucald. Mas,e´repelida em prol da imagem dúplice da jovem parca,irmã-matriz de um torturado monologo poético do Eu com a consciência de si mesmo .Ja´em" Ebauche d´un serpent" (1921),revestida da simbologia bíblica,a serpente ressurge,maiúscula---não mais "un serpent",mas " Le serpent"---assumindo o papel de protagonista.Antropomorfizada em satã-pensamento ,e´a própria serpente que agora monologa ,no cenário mítico do jardim do éden.O poeta se apropria de sua imagem,utilizando o "topos" da tentação de Eva para um mergulho no universo falaz dos sentidos,através da erotização da linguagem,e os personagens do apólogo religioso para um questionamento implacável da existência,que recobre o arquétipo ingenuo da fabula com a reflexão irônica e amarga sobre o Ser e o Nada.

Nos Cahiers-- a secreta aventura intelectual que ocupou a mente de Valery,de 1894 a 1895--são numerosas as aparições da serpente -intelecto ,"o diabólico chicote de víboras das ideias",que perturba a vigília do pensador.Desdobrada em variantes conceituais,a serpente e´,aqui,essencialmente a figuração do pensamento levado as ultimas consequências ,o pensamento que se devora a si mesmo,como a serpente que morde a própria cauda---uma imagem que Valery chega a usar em uma de suas divisas principais:Eu mordo o que posso.E´conhecido,também,o emblema -desenhado pelo próprio Valery,da serpente enlaçando uma chave ,com as iniciais PV.Os Cahiers estão recheados de desenhos ,esboços e esquemas em que aparecem serpentes que se devoram,algumas vezes associadas a figuras geométricas e reflexões de cunho cientifico.Não e´curioso que o químico alemão Kekule,descobridor da formula da estrutura molecular do benzeno(corrente de 6 átomos de carbono,fechando-se em anel),tenha afirmado haver visto em um sonho uma serpente comendo a própria cauda ?A Serpente,e´-na simbologia Valeriana-o ícone do pensar,atividade que ele conduziu aos extremos.

"Acostumar-se a pensar como Serpente ,que se come pela cauda.Eu contenho o que me contem.E sou continente e conteúdo."Em texto de 1944,o poeta pressente reerguer-se dentro dele ,viva,a serpente;"A morder seu coração e a moer entre as espiras seu peito."---Impotência e Infinito.Ha quem afirme ser a serpente,desde a antiguidade ,um simbolo de sabedoria,como indica o nome grego ophis-serpente,quase-anagrama de sophia-sabedoria. Valery teria consciência de que a palavra penser e´um palíndromo silábico de serpent.? Ja vimos as duas palavras associadas  a imagem da víbora que devora a própria cauda .Em outro texto,ligado a imagem da cobra,"Se parler,c´est penser qu´on parle,mais c ést parler ce q ón pense."No Cahiers XXVIIII: grafico do tempo ,onde a palavra present aparece ligada a ideia de locomoção no sentido inverso.,em direção ao passado ,dentro de uma curva de movimento contrario ,abaixo,o desenho de uma serpante que olha para trás ,para a cauda,com a legenda:"Como?Isso também sou eu ?" Present -nesse contexto-como anagrama de serpent.

Ideograma do poeta -pensador:Serpent-Penser

                                                   Present-Serpent

Buscando capturar algo da grandeza do escritor que no dizer do Labiríntico Borges:"personifica os labirintos do espirito."

Augusto de Campos.

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