Nosso
Louco.
“ A loucura como o sol ,tem sua própria órbita.”
Hamlet. William Shakespeare. (1564-1616).
Dedicado a Franco Basaglia.
Obs.
: O conto a seguir foi feito, a partir
de relatos colhidos na cidade de Pedro Leopoldo. Nomes foram alterados para
preservar as pessoas.
Costumam dizer que na cidade pequena não há
privacidade e que na grande há liberdade. E´ verdade que a intimidade nas
cidades menores e´ meio publica , mas, há um calor humano que não se encontra
nas cidades grandes.Ao passo, que na cidade maior se desfruta de mobilidade,mas a convivência entre as pessoas beira a indiferença.Então temos virtudes e
limitações , em ambas.
Nosso “causo” começa em uma cidade do
interior mineiro, de médio porte, industrializada e próxima da capital. Lá,
havia um personagem folclórico, como em tantas cidades e bairros da minha
infância, na capital.
Um Negro idoso, setenta e tal (ninguém
sabia ao certo a idade, nem ele), no entanto, tinha apenas alguns fios brancos
em seu cabelo carapinha, que ele trazia penteado e repartido. Com óculos de
lentes grossas, vestia-se de modo formal; paletó (roto), camisa abotoada ate o
pescoço e sempre descalço! Como os escravos, no período Imperial...
Constava que seu nome de batismo era José,
mas todos o conheciam por Péricles, que era como ele se autodenominava. Era
doente mental, mas seu perfil dócil e pacífico o tornava sociável. Alem do que
era erudito, tinha conhecimentos de Filosofia e Historia que repartia, de bom
grado, com quem quer que fosse.
Os antigos contavam que a infância
miserável, não lhe tirou a sede de conhecimento; ao contrario, ávido pelo
saber, tanto estudou e se esforçou, que sua
mente combalida, o traiu! Era um desajustado, diziam, mas ninguém negava a
simpatia que irradiava. Eloqüente e
informado, discursava com facilidade sobre a Guerra do Paraguai ou sobre a
importância de Santo Agostinho no pensamento cristão.
Claro, por vezes era ininteligível
especulando sobre a finitude do universo e da vida no cosmos. De qualquer modo,
a cortesia publica sempre se fazia presente no cotidiano de Péricles, que era
convidado a participar das rodadas de bebida, nos bares da cidade. Mesmo
alcoolizado (estado freqüente), não perdia o elam, com o tempo sua lucidez e
palavras se faziam sentir cada vez mais. Era como o bom vinho, quanto mais
velho, melhor. Andava pela cidade constantemente, entrava em bares, onde lhe
ofereciam a “loura” (cerveja)ou
a”branca” (cachaça);escolhia ora uma ,ora outra.
As vezes,postava-se na calçada e com jeito
de orador,olhos fixos no infinito, discursava de modo claro sobre a diplomacia
de Juscelino Kubitscheck ou outro tema do cenário político.Falava bem, sem
erros gramaticais ou palavras chulas.Sua clareza e facilidade chamaram a
atenção de políticos ,que em períodos eleitorais o usavam como “garoto
propaganda”,buscando que ele persuadisse os eleitores em favor deste ou aquele
candidato.O pagamento? Bebida, comida e elogios... Nem sempre ele se dispunha a
fazer “marketing” para eleitoreiros.
Por tudo isso, se tornou uma figura querida
na cidade , que se habituou com sua presença e palavras. Por vezes, algum
zombeteiro tentava provocá-lo enquanto discursava. - “ E ai, falador , porque
você fala tanto?”,instigava um;
-“ Eu de Cá ,você de lá e
ribeirão passa no meio.”Respondia sereno, mas peremptório. Ou ainda:
-“ô negâo, porque você
não usa sapato?”
-“Porque foi descalça
que minha raça ajudou a construir a riqueza deste pais !.” Consta que nesta
ocasião, o provocador se retirou, aturdido...
Tradicional era a “
festa do poste “, na qual os moradores de determinada rua ,aguardavam os
reparos em um poste, que nunca vinham; então, ironicamente, comemoravam, todo
ano (na data do pedido feito e não atendido) ,no bar em frente ao poste ,com direito
a bolo de aniversario...Sempre convidado a discursar, nestas ocasiões ,
Péricles, enaltecia as qualidades do grego de quem usava o nome, nomeando, as
virtudes do líder Ateniense.
“ Foi o primeiro
prefeito da historia,incentivou as artes e enricou (enriqueceu) a cidade de
Atenas.Criou a democracia e foi um estadista ,como J.K. ...”
Prosseguia por muito tempo, loquaz e emocionado seu discurso
inflamado, e regado a álcool pela platéia, encantada. Era, assim, uma espécie
de patrimônio da cidade; querido e sempre presente.
Certo dia a rotina da cidade foi quebrada, Péricles fora
visto pela ultima vez no fim de semana, como de costume, vagando pelas ruas.
Depois, a monotonia deu lugar ao espanto, Péricles estava preso na capital!
Como? O que fora fazer La? Como chegara La? Isto ninguém soube explicar. O que
alguns rapazes, que estudavam em B.H. ,disseram e ´que fora preso por andar nu
na cidade! .O que se descobriu: fora para Belo Horizonte e em plena rodoviária
começou a discursar, por horas... Mas ninguém lhe prestou atenção. Diante do
descaso das pessoas e das aglomerações típicas da região, estranhou o barulho e
a desatenção de todos. Afinal, era sempre ouvido... Sentiu-se morto, abandonado, solitário,
naquele inferno de concreto quente?.
Como uma alma perdida no limbo, despiu-se e começou a vagar
pela cidade. Em silencio e nu andou alguns quarteirões, ate ser detido por
policiais, a quem não opôs nenhuma resistência. Causara pânico, mas estava
estranhamente quieto e calmo. Quando indagado, disse ser de outro mundo, um
espírito invisível e inaudível.
Claro! Era louco! Assim diziam os
jornais e também os psiquiatras, que trataram de interná-lo imediatamente.
Alguns conterrâneos
foram visitá-lo no hospital;não tinha parentes; mas ele nada dizia e fitava com
olhar vítreo, o nada.Silenciou, sua palavra antes tão viva ,quedava inerte como
sua identidade.Os médicos disseram que ele estava catatônico, incapaz de reagir
ao mundo externo ,indiferente a tudo,ate a
si próprio.Na volta para a cidade, as pessoas, comentavam:”Virou um
morto-vivo.”,ou “ Coitado. Não fazia mal a ninguém.”
Poucos meses depois, morreu. Dele ficou a lembrança de seus
discursos, o fundamento de seus argumentos, suas palavras, enfim, ecoando pelas
ruas, bares e becos da cidade.
E a sensação de que se não tivesse saído de sua cidade,
ainda estaria vivo...
Autor: Marco Antonio E. da Costa.